Logo que acordaram aqueles milhões todos da celebração do dia da libertação olharam para todas as paredes, madeiras e panos e móveis e máquinas e aparelhos de áudio e de vídeo para encontrar qualquer sinal de mudança entre o dia da escravidão e o dia da libertação.
Olharam para tudo e com os olhos esbugalhados e como que envergonhadamente atreveram-se a abrir as portas do frigorífico e da arca congeladora e, por espanto, tudo estava na mesma, não se notando qualquer mudança por mais ínfima que fosse.
O dia a seguir ao dia da libertação não tinha mostrado qualquer alteração no interior da habitação de todos aqueles milhões, excepção para todos aqueles que não tinham habitação ou que habitavam a casa dos outros e mesmo assim nada de novo naquelas bandas.
Se não houve qualquer mudança aqui dentro, certamente que lá fora e à vista de todos os milhões o dia após o dia da libertação ofereceria o ambiente mais deslumbrante que se poderia imaginar.
Os jardins da cidade estariam completamente floridos e limpos de toda a porcaria, incluindo a porcaria deixada pelos humanos; as avenidas da cidade não apresentariam buracos nem falta de pedras na calçada; os passeios estariam a brilhar; as árvores estariam devidamente podadas e tudo o que os olhos pudessem fixar apresentaria aquele aspecto etéreo com que a natureza brinda todos aqueles que a veneram e a conservam.
Certamente que lá fora, nos transportes públicos, nos transportes privados, nos serviços públicos, nos serviços privados, nas empresas públicas, nas empresas privadas todos aqueles milhões que celebraram o dia da libertação veriam e sentiriam que o tratamento dado estava acima de qualquer crítica, onde a boa educação primava, fazendo esquecer todos os maus tratos e todas as desconsiderações que os tais milhões encontravam em todos os lugares que eram obrigados a frequentarem para tratarem das suas vidas, dos seus deveres e dos seus direitos.
Certamente que tudo teria alguma mudança que se visse, principalmente nos novos recibos de salários e de pensões com mais alguns cêntimos, para que todos aqueles milhões que celebraram o dia da libertação ficassem a saber que alguma coisa mudara, mesmo que pouco ou quase nada se fizesse sentir, pois não era lícito esperar que logo após um dia apenas pudesse ser devolvido tudo aquilo que fora roubado durante os anos anteriores.
Muitos ficaram a analisar um pouco melhor as suas casas para ver se lhe tinha faltado alguma; outros saíram para rua à procura das novidades do dia após o dia da libertação para constatarem que tinha havido boas e decentes e válidas razões para celebrar o dia da libertação.
Ninguém pensava que no dia a seguir ao dia da libertação seria possível pendurar um novo conde andeiro; ninguém pensava que no dia seguinte ao dia da libertação pudesse ser possível dar cabo de um monárquico nem sequer alguém pensou em apanhar algum informador da polícia política que se fazia disfarçar e agora era todo revolucionário e andava de mãos no ar a dar vivas aos militares de cravo no cano da espingarda.
Ninguém esperava isso e talvez, por isso, ninguém estranhou que no dia seguinte ao dia da libertação não encontrasse qualquer novidade, qualquer coisa que diferenciasse o dia de hoje do dia de ontem.
Estava tudo na mesma até os mesmos gritos das mesmas pessoas nas acções da campanha eleitoral para o parlamento do poder supremo do expoente máximo da democracia universal...
Mas nada foi suficiente para fazer desanimar o desgraçado: se não se nota agora, haverá de notar-se no futuro, porque deuses há muitos e céus e infernos abundam por aí.
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